quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Crônica

Ser feliz com o pé na lama

Por Elismar Pinto

São exatamente 11:15 h da manhã de um dia de quarta-feira. O dia está quente, abafado, ensolarado, sem uma nuvem sequer. Para a D. Penha, dia bom para lavar roupa, “Vai secar num instante! Com esse sol”. Falo eu, para a D. Penha. Eu sou Elismar Pinto, tenho 26 anos, e sou vizinha desta simpática senhora há mais de vinte. Moramos na mesma rua do Bairro do Alto de Coutos.

Penha, como é carinhosamente chamada pelos amigos, é dona de casa, às vezes diarista, quando consegue algum bico. Ela é negra, baixinha, gorda e farta de seios, deve ter uns 55 anos, os seus cabelos são duros, grisalhos e vivem soltos e despenteados. Ela é bem pobre, mora em uma casa de lona e madeirite. Tem um marido alcoólatra que há tempos está desempregado. Dos cinco filhos que pariu, um, está preso, deu para o que não presta, os outros foram embora, há muito tempo não se tem notícias. Porém, apesar de tudo, ela se mostra uma pessoa feliz. Sadia e de uma tão feliz disposição de gênio e otimismo, que tudo a leva a rir, mas um sorrir natural, sincero e despreocupado, sorriso de verdade, de felicidade que ela consegue enxergar não se sabe de onde.

E foi cercada de pessoas como a D. Penha, que eu cresci, e convivo até os dias de hoje, gente que sabe sofrer, perder, chorar, viver e quando não tem mais jeito rezar. Algumas aprenderam a morrer, porém outras, de fato sabem o que é viver. Pessoas felizes de verdade, que apesar te todas as dificuldades, e são muitas as dificuldades, conseguem levar a sua vida injusta, com retidão e honestidade.


Não lastimo em ter crescido em um lugar tão humilde, esse fato me ensinou a dar o devido valor às coisas, sobre tudo as pequenas coisas, apesar de ter que pisar na lama todos os dias. Quando me refiro à lama e as dificuldades do local, logo vem uma pessoa para me recriminar, afirmando que existem lugares piores. D Penha, com a sua visão otimista das coisas, é uma delas. Ela diz que dificuldade existia antigamente, quando o bairro não tinha água nem luz, e começa a narrar de maneira muito divertida toda a transformação do local, que para ela, foram enormes progressos.


Moradora antiga do bairro do Alto de Coutos, ela acompanhou de perto toda essa metamorfose, e com alegria brinca dizendo que ajudou a fundar o bairro, que derrubou as árvores e ateou fogo nos capins. Quando ela começa a narrar as transformações do local, me obriga a relembrar a minha infância, pois mudei para o bairro ainda muito pequena, e guardei algumas lembranças, algumas experiências, situações que me marcaram, que me fiseram crescer como ser humano e pessoa.


Essas transformações foram decisivas para o crescimento do local. Crescimento no sentido bem denotativo da palavra, pois o bairro cresceu, porém em muitos aspectos não se desenvolveu.


Antes de ser batizado com o nome de Alto de Coutos, o bairro chamava-se Parque Carvalho. Pois, há aproximadamente trinta anos atrás, todo o território era uma grande fazenda que pertencia à família Carvalho. Com a morte dos donos, essa fazenda foi dividida e aos poucos vendida, e por fim transformou-se em um grande loteamento.


Ao olhar do quintal da minha casa, eu tinha a impressão de estar no meio de uma grande floresta. Tudo o que eu conseguia vislumbrar era coqueiros, gameleiras, trepadeiras, jaqueiras, mangueiras, árvores de muitas espécies, plantas exóticas com verdes de todos os tons. E entre elas, algumas casinhas aqui e acolá cercadas de mato.


Os terrenos eram irregulares cheios de rebentões, desnivelados e recheados de buracos. As ruas, eram caminhos estreitos pareciam trilhas que serpenteavam entre os capins cortantes, grandes e ásperos que cresciam sobre toda a extensão do meu horizonte.


O Progresso

Uma certa manhã chega o “progresso”, em forma de tratores, maquinas gigantes que trabalhavam sem parar. Primeiro cortando o capim, depois tapando os buracos e por fim derrubando as árvores. Aos poucos, as diferentes tonalidades de verde, deu lugar para um enorme espaço vazio, com um chão de terra avermelhada, que a cada dia que passava era ocupada por uma minúscula casinha de taipa, e depois de bloco, e depois de lage, e atualmente há tantas casas, que é até difícil separar uma da outra.


Para uma criança, acompanhar tudo aquilo era uma experiência fantástica. Eu não tinha idéia do que era tudo aquilo, algumas vezes ficava triste porque gostava das árvores e das plantas, mas também me divertia ao ver a aparição de uma nova casinha. A maioria delas era azul e verde, outras rosa e algumas amarelas. D. Penha, brinca dizendo que pobre adora pintar a casa de verde, ela diz que da esperança. E foi essa esperança que segundo ela lhe deu forças para continuar seguindo a sua vida, e passar por tantas privações durante todos esses anos.


Atualmente quando afirmo que o bairro não progrediu, me refiro à estrutura física do local. Apesar de todos esses anos, algumas pessoas ainda sofrem sem água encanada, algumas famílias ainda utilizam água de poços. As ruas não são pavimentadas, exceto a rua principal, e não há coleta diária de lixo. O local é cheio de ladeiras, escadas, ruelas estreitas, umas casas em cima da outra, do lado, embaixo, parece um labirinto que muitas vezes não tem saída. Algumas ruas são sujas, movimentadas, cheias de botecos com homens bebendo e falando palavrões, crianças correndo para lá e para cá, brincando de bola, de gude e fura pé.


No entanto, também há lugares bem diferentes. Com boas casas, comércio, lojas de pequenos empresários, donos de escolas e mercados, pessoas com mais de um automóvel, com TV a cabo e computador. Existe uma grande desigualdade nas adjacências. Se de um lado permanece uma acentuada penúria, do outro há uma iniciativa de um possível progresso.


Lembro-me que na época, o bairro só contava com uma linha de transporte coletivo que era Alto de Coutos x Terminal da França. Esse fato fazia com o que os ônibus andassem superlotados obrigando muita gente a recorrer ao trem. Além de ser mais barato, na época, era mais agradável.


A primeira vez que entrei no trem, tinha seis anos, fiquei tão feliz que nem consegui olhar a paisagens na janela. Mas, alguns passeios depois, comecei a prestar atenção em tudo o que estava a minha volta. Eram pessoas de todos os tipos, cores, tamanhos e estilos. Trabalhadores, estudantes, vendedores de algodão doce, de picolé, de balas e salgadinhos, pastores que diziam pregar a palavra, os ambulantes então, era um espetáculo a parte, com todo o tipo de bagagem possível.


Quando o trem iniciava sua longa trajetória de 13,7 quilômetros em sua marcha lenta e que aos poucos acelerava, proporcionalmente o seu rítimo me embalava. Sempre procurava sentar perto da janela, pois gostava de olhar a paisagem, era quase hipnótica. Nela via vários rostos, tristes, alegres, sem expressões, alguns indecifráveis, pessoas igualmente pobres, das quais eu já conhecia, mais não tinha aquela alegria da qual eu estava acostumada a ver. Com isso comecei a perceber que havia acentuadas diferenças entre as pessoas, entre os lugares, no estilo de vida de uma forma geral.


Porém, o que mais me marcou nessas viagens de trem, foram às palafitas do bairro do Lobato. Se eu ficava impressionada com a aparição de casinhas coloridas, imagine quando vi pela primeira vez uma casa flutuando na água. Fiquei estasiada e ao mesmo tempo horrorizada, era o meu primeiro contato com o diferente. Até então eu não conhecia outra realidade diferente da minha. Ao ver uma criança que era quase um neném, fazendo côco na água, perguntei para a minha mãe se ali não tinha banheiro? Ou um penico? Porquê ele estava nu, e se alguém ia limpar o bumbum dele?


E, ao olhar as palafitas, me perguntava: como foi construída? Como seria morar lá? Será que as pessoas tinham medo de cair? Onde as crianças brincavam? E quando chovia, como as pessoas dormiam? Porquê a maré não conseguia derrubar? Como uma varinha tão fininha sustentava o peso de uma casa com pessoas dentro dela? E todos esses questionamento regidos ao som do trem passando na ponte: “café-com-pão-café-com-pão-café-com-pão”, e de repente a escuridão total do túnel, que me assustava e me fazia sair de todas essas indagações.


A Conclusão

Depois, mais tarde quando comecei a perceber como a vida é cruel e injusta com algumas pessoas, o meu questionamento era: o que leva uma pessoa como a D. Penha que é pobre, feia, e mora na lama, a sorrir e ser feliz? E me surpreendi com a sabedoria de sua resposta, quando lhe fiz essa pergunta. E com base na sua resposta cheguei a essa conclusão:

Muita gente acha que felicidade é ter uma vida livre de dores, problemas, lutos, onde nada de ruim acontece. Que é amar alguém sem defeitos, que é ter dinheiro de sobra, sucesso sem competição, saúde perfeita, amor incondicional, tudo isso em um corpo escultural magrinho e sem celulite. Só que essa felicidade não existe. E correr atrás dela é um desperdício de vida sem paralelo. Aprendi que temos que tentar colocar os inexoráveis problemas em perspectiva, isto é, dar a eles o tamanho real, e começar a ser feliz, com ou sem eles.

O que faz essas pessoas serem felizes e sorrir verdadeiramente é que, eles têm uma visão diferente do que é a vida, tem sensibilidade o suficiente para perceber o que é quase imperceptível , pois não estão acostumados a viver coisas grandiosas. Porque o que traz felicidade, é simples, banal, corriqueiro. Todos têm nacos de pequenas felicidades diárias que formam uma felicidade grande, arredondam a conta.

Felicidade é a volta por cima depois de um baque, é a vitória após um desafio, mesmo que dure apenas um instante. É se olhar no espelho e aprender a gostar do que vê. É ter sensibilidade de saber reconhecer os defeitos inaceitáveis em um parceiro ou amigo ou irmão.


Para mim, é surpreendente e gratificante viver perto de pessoas tão ricas e sabias, são meus visinhos, pisam na lama como eu todos os dias, os cumprimento e converso com eles sempre que o tempo dá. E a cada conversa é uma lição de vida diferente. Apesar de continuar a reclamar quando sujo os meus pés na lama, gosto de ter por perto pessoas com que posso contar e aprender, tenho que admitir, que essa gente a minha gente sabem o sentido da palavra viver em toda o seu amplo conceito.

Nenhum comentário: